sábado, 23 de junho de 2018

NENÊ

A palavra Nenê apresenta diversas conotações. 
O nenê é a criança recém nascida, o bebezinho admirado e amado pela família. Sua pronúncia, afetuosa, muitas vezes se nasaliza e tias e avós se aproximam do pequeno ser com a frase: Onde está o neném da vovó? Cadê o neném da titia?
Muitas vezes identifica o caçula. Enquanto os irmãos têm seus nomes ou seus apelidos, o mais novo dos irmãos continua sendo o Nenê. Deixa de ser uma designação para ser um apelido, um nome. E por vezes o Nenê envelhece e continua sendo o Seu Nenê...
Mas não é privilégio de crianças do sexo masculino, Nenê designa meninos e meninas. Deixa de ser o Nenê para ser a Nenê.
E por toda a vida lá se vão as Donas Nenês, as Tias Nenês...
Todo esse prólogo para falar sobre duas Nenês que guardo com carinho em minhas remotas lembranças. 
Dona Nenê era mãe de minha madrinha de batismo, Ignez. Com certa regularidade, minha mãe ia visitar a comadre e consequentemente a família. Era uma grande família que vivia em três casas em um mesmo amplo terreno. Ficava no Braz, em São Paulo e, se a memória não me prega peças, a casa da madrinha era a segunda. Entrávamos por um pátio lateral, largo, com pouca vegetação e foi lá que aos nove ou dez anos permiti que um dos meninos beijasse meu rosto... 
Não me esqueço da figura forte que nos recebia com carinho. Com ela aprendi a fazer panquecas e a receita, que sigo até hoje, não falha: 1 copo de leite, 1 xícara de farinha, 1 ovo e uma pitada de sal. 
Todas as vezes que sirvo as panquecas recheadas lembro-me de Dona Nenê e de minha infância feliz.
A outra Nenê, conheci mais por conversas e informações de minha mãe e de minhas irmãs. Tia de minha mãe, Tia Nenê cuidou do cunhado viúvo com três filhos, a mais velha com 16 anos, minha mãe com 14 e o caçula de 11 ou 12 anos. A irmã, minha avó Hermínia, faleceu cedo, de doença desconhecida, que foi paralisando seu corpo até a falência total. A Professora Hermínia Villaça Camorim, formada pela Escola Normal Caetano de Campos, no século XIX, que se orgulhava de não ter faltado um só dia às aulas durante a epidemia de gripe espanhola, não resistiu aos dias em que ficou abrigada em um porão, enquanto a revolução de 1924 acontecia nas ruas de São Paulo.
Tia Nenê cuidou dos sobrinhos e depois de um sobrinho postiço, com quem viveu até falecer. 
Lembro-me de Tia Nenê, em uma visita que nos fez,  sentada na cama de minha irmã mais velha, a fazer uma trança no cabelinho ralo e grisalho. Já era idosa e pouco convivi com ela.
Por mais que me esforce, as lembranças são de fatos narrados por minha mãe ou meus irmãos. Essa imagem, da mulher franzina a trançar os cabelos, embora seja  a única, é  extremamente nítida em minha mente. Mas, ao lado de outras lembranças, constrói o extenso álbum de imagens afetivas, que constituem minha história de vida...


YouTube: 
Perfect - Ed Sheeran - Brooklin Duo

quinta-feira, 5 de abril de 2018

NÁUFRAGOS

Somos náufragos depois da borrasca
a pele crestada de sal e chuva,
as mãos feridas pelo leme áspero
na tentativa de manter o norte,
de manter o prumo...
Os passos trôpegos de novo em terra,
tentam encontrar o rumo há tanto perdido,
e seguimos desgarrados, combalidos...

No olhar, o cansaço de quem muito viu,
muito sonhou, muito perdeu...
A boca amarga do desengano,
lábios feridos, sem palavras, mudos...
Sim somos náufragos,
extenuados,  trôpegos, frágeis
mas sobrevivemos,
sim, sobrevivemos...

E continuamos,
e procuramos novos mares,
novos rumos,
novas metas.
Içamos as velas da esperança
e aguardamos  o vento bom que possa nos levar
talvez a novos portos
ou a paragens desconhecidas,
novas terras a desbravar.
Uma nova chama se acende e lá vamos nós
em busca do momento perdido,
do espaço a descobrir,
do tempo a se revelar,
da vida,
simplesmente...


"Um navio em alto mar apanhado pela borrasca"
Willen van de Velde, o Velho - 1680
https://pt.wikipedia.org/wiki/Willem_van_de_Velde,_o_Jovem



sábado, 24 de março de 2018

QUASE

A gente quase perde o trem...
Por um minuto, por um segundo,
uma fração de segundo.
E o pensado, o planejado, o desejado
poderiam se desfazer no tempo e no espaço
nesse instante fugaz...
Quase...
A gente quase ganha na loteria...
Por um número apenas, apenas um.
E todos os sonhos se realizariam,
todos os problemas terminariam
e a vida seria complacente, 
os passos teriam rumos certos...
Por um número apenas.
Quase...
A gente quase morre
e a volta, muitas vezes, é dura e triste,
mas a vida se sobrepõe e a gente continua, 
sem se lembrar de que um dia o "quase" se interpôs
e o que seria fatalidade, tornou-se apenas recomeço.
Quase...
A força dessa pequena palavra
que é senhora e dona  do nosso destino
parece transcender o vocábulo,
assume a forma de um oráculo 
manipulando o futuro a seu bel prazer.
E a gente segue vivendo a vida
sem muito pensar.
sem muito perceber, 
ou talvez 
Quase...




Daúde
QUASE
Caetano Veloso e Antônio Cícero
YouTube

quarta-feira, 21 de março de 2018

POESIA MULHER




Google Imagens


O poema que trago hoje é de autoria de uma velha amiga. 
Embora o tempo e a vida tenham nos distanciado - apesar de vivermos na mesma cidade - a leitura de seus poemas me fez lembrar a jovem de porte altivo e confiante que participou do grupo teatral da cidade, do qual eu, por breve espaço de tempo, também fiz parte.
Participamos do TEM, Teatro Experimental Mogiano, espaço em que se representava a vida, em um momento crítico de nossa historia política; época de repressão e violência contra aqueles que ousassem manifestar-se contrários à situação.
Mas, o objetivo desta página, hoje, é trazer o belo texto de Regina Lúcia Moreira Gomes, publicado na coletânia ENCONTRO IX,  sob coordenação do também poeta Walter Aguiar.

Vem a propósito o poema sobre a mulher, já que vivemos novamente tempos difíceis, e as vozes que se elevam têm sido caladas com ameaças, violência e morte...

MULHER INTEMPORAL

Tenho andado à beira do mundo
nas beiradas das calçadas
nos beirais dos séculos.
Eu, mulher, intemporal,
sem antes, sem ontens,
sem amanhãs.
Estou na memória do tempo
nos milênios da história, sou o que foram antes de mim, 
eis meu futuro.
Mulher nas chamas da noite
nos apelos  do mundo,
mulher das grandes horas,
das decisões seculares, mulher branca, negra, colorida,
sempre mulher.
Tenho andado por entre sedas
e calçado tamancos,
tenho tido joias nas mãos
e as mãos sangrando nas lavouras
dos séculos,
tenho rido risos à toa
e chorado as lágrimas mais amargas.
Tenho sido tudo e todos,
tenho seios que atraíram e mataram
tenho tido seios que amamentaram
reis e povo.
Tenho andado à beira do mundo
com o ventre inchado de humanidade,
tenho andado nos beirais da vida.
Eu, intemporal, sempre mulher.

Regina Lúcia


Texto: Coletânia IX. Org. Walter AGuiar. Mogi das Cruzes, SP, 2015, Ed. do Autor, Ribson Gráfica 
Imagem: Google Imagens, Disponível em: https://zenyzenam.cz/blog/11-odpovedi-znacka-zena/


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

TEMPO





A persistência da memória
Salvador Dali

Três poetas, um pintor e um compositor.
A arte em três momentos: a poesia, a música e a pintura.
O tema, cada um à sua maneira e forma, é o Tempo.
Tempo de ver, de ler, de ouvir.
Mas principalmente, de sentir e de usufruir...

TEMPO-ETERNIDADE
Paulo Mendes Campos

O instante é tudo para mim que ausente
do segredo que os dias encadeia
me abismo na canção que pastoreia
as infinitas nuvens do presente.

Pobre de tempo fico transparente
à luz desta canção que me rodeia
como se a carne se fizesse alheia
à nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira 
e a minha eternidade uma bandeira
aberta em céu azul de solidões.

Sem margens sem destino sem história
o tempo que se esvai é minha glória
e o susto de minh'alma sem razões.

⚜⚜⚜⚜⚜

MOTIVO
Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

⚜⚜⚜⚜⚜

O TEMPO PASSA? NÃO PASSA
Carlos Drummond de Andrade

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor,  florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora, 
e o teu aniversário
é um nascer a toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
 o apelo da eternidade.

⚜⚜⚜⚜⚜


Oração ao tempo
Caetano Veloso

⚜⚜⚜⚜⚜


SALVADOR DALI. A persistência da memória
In: http://www.culturagenial.com/a-persistência-da-memoria-de-salvador-dali/
CAETANO VELOSO. Oração ao tempo. 
In: YouTube
CAMPOS, Paulo Mendes. Antologia poética. Rio de Janeiro: Fontana Expressão e Cultura, 1978.
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ANDRADE, Carlos Drummond. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record, 1993.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

NA TERRA DO CARNAVAL




Nos próximos dias, não se falará mais do mar de lama e corrupção que tomou conta deste país.
Não se decidirá se  políticos são culpados ou inocentes, se o rombo desta ou daquela instituição é fruto deste ou daquele esquema...
Por quatro dias, nada será resolvido, discutido, avaliado.
O meu país entra em recesso: o que importa agora é o Carnaval!!!
Certo? Errado? Não sei. 
Sei que o povo vai às ruas, não mais para protestar, mas para cantar, dançar, divertir-se. Os que não saem à rua estão em casa, em descanso, talvez curtindo um churrasco com a família, ou vendo pela TV a folia dos outros.
Assim é o meu país.
E eu? 
Para mim, Carnaval é um momento de descanso da rotina de dona de casa, mãe, esposa, avó. Aproveito para sentar-me ao piano sem me preocupar com o tempo que passa, ou escrever algo neste espaço, ou ainda, digitar mais algumas páginas do romance que teima em não se dar por terminado.
Minhas lembranças de Carnaval são poucas e controversas.
Lembro-me da fantasia preparada por minha irmã para a matinê do clube da cidade.  Lembro-me do medo que tinha, bem pequenina, dos  bonecos que eram preparados em um galpão próximo à minha casa, para saírem no bloco, à noite;  medo também dos amigos de meus irmãos, já moços, que, fantasiados de gorila vinham brincar  comigo e com minha mãe.
Mas a lembrança mais marcante foi a de uma imagem que permanece na memória até hoje. Deveria ter uns dez anos e ia até à padaria em um domingo de carnaval, à tarde. No caminho, um bar com mesinhas e sobre uma delas uma bailarina - de pernas peludas - em um vestido rosa... Dançava e eu, pasma, olhava para a figura que sem dúvida era um de meus irmãos...
Havia inocência naquele tempo. Havia brincadeira nas ruas e nos salões. Havia alegria.
Hoje, em tempos de drogas, muita bebida, licenciosidade, e também de folias programadas, com ingresso, camarotes caríssimos, me pergunto se o Carnaval mudou para melhor ou para pior. Repito: não sei...
Mas é inevitável a pergunta: Quem mudou? Foi o Carnaval ou será que quem mudou fui eu...

Bom Carnaval!

Chico Buarque
Quem te viu, quem te vê
YouTube

Imagem: http://fitfoodideas.com.br/tag/carnaval

domingo, 28 de janeiro de 2018

LEMBRANÇAS DE VENEZA






Assisti a um documentário sobre Veneza, dia desses...
Inevitavelmente, as lembranças vieram de mansinho e tomaram conta do pensamento. Momentos, pessoas, lugares e o prazer, o eterno prazer de viajar, de conhecer o desconhecido, de aventurar-se.
Minha estadia nessa bela cidade, que flutua na lagoa do mesmo nome, no mar Adriático, foi um tanto complicada. Problemas de acomodação:  sábado, procurar um alojamento? Impossível.
A inexperiência da primeira viagem à Europa fez com que chegássemos à cidade sem um hotel reservado. E lá íamos nós, "de mala e cuia" como se diz por aqui, subindo e descendo os degraus das pontes, até chegarmos à Pensão Guerino, graciosa e acolhedora.
Antes disso, provamos a hospitalidade e honestidade europeia (falta um pouco disso por aqui - nem tanto quanto à hospitalidade...).  Deixamos nossas malas no  saguão de um hostel,  por sugestão do atendente, um  rapaz educado e solícito, e fomos em busca de uma reserva na estação de trem. Sem desconfiança, nossa bagagem ficou em um corredor, junto a outras tantas, por sugestão de um desconhecido! Faríamos isso no Brasil?
Finalmente instaladas, e com a bagagem, certamente,  saímos a conhecer a bela Veneza...
Mas, veio a chuva! E ela  nos acompanhou durante todo o sábado e o domingo, só parando quando fomos embora.
Realmente, foi uma estadia um tanto turbulenta e frustrante. Entretanto, fica a lembrança do passeio pelos canais a admirar os  belos palácios, da Piazza San Marco, cheia de gente - e de pombos - e os labirintos medievais que nos transportaram para outros tempos.
A beleza do lugar, o prazer de simplesmente estar ali, certamente desfaz toda e qualquer lembrança negativa.



Rondò Veneziano - La serenissima
Versione Estesa
Youtube

Imagem: tela de  Canaletto (1697-1768)
Google Imagens