terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

CRÔNICAS DA MINHA TERRA: SIMPLESMENTE JARDIM


Coreto do Jardim - Praça Oswaldo Cruz
Primeira metade do século passado
Arquivo de Chico Ornellas (jornalista)


Era ponto de referência, lugar de encontros amorosos ou nem tanto, ao lado da estação de trem, do cinema popular, da caixa econômica estadual, da principal rua da cidade.
Era chamado simplesmente de "Jardim".
Se alguém perguntasse onde ficava minha casa, dizia: fica perto do jardim. E pronto, identificava-se a localização.
No centro, um coreto, onde, em ocasiões especiais, apresentava-se a Banda Santa Cecília, referência em música da cidade. Ao lado, um "bosquinho", espaço em que a vegetação vedava aos olhos indiscretos, os encontros dos enamorados.
As árvores, enormes, ao menos para meus olhos infantis, formavam uma cobertura verde, que deixava escapar os raios de sol: como fitas iluminadas, desciam formando desenhos no chão.
Era um tempo em que as ruas não ofereciam perigo: crianças ali  brincavam, até mesmo à noite, muitas vezes sem que o olhar adulto estivesse presente. As portas das casas, abertas, aguardavam o retorno de seus pequenos moradores, que, sem medo, corriam, jogavam bola, pulavam corda...
Nesse tempo, eu, menina de longas tranças,  imaginação fértil e poucas palavras, passava horas sozinha, no Jardim, a ler.
Levava meus livros, ou livros de meus irmãos, e, sentada na imensa raiz de uma daquelas árvores, me perdia nas aventuras de Emília, de Pedrinho ou então nas aventuras mais maduras, de Flash Gordon, de Tarzan  ou de Mandrake.
Não havia medo, nem preocupação dos adultos. Havia apenas o fruir de um espaço em que  famílias frequentavam,  crianças brincavam...
O tempo passou, a menina cresceu, o mundo mudou.
O Jardim, que já foi chamado de Praça do Relógio, de Praça do Aviário - por um breve tempo - é hoje a praça Oswaldo Cruz. Talvez já fosse, naquela época, não sei... 
Espaço de passagem de quem chega  à cidade de trem, ou de quem a deixa, perdeu seu caráter familiar. Não há mais crianças a correr ou a recolher folhas caídas para fazer cocares, não há mais famílias levando bebês ou sentadas a conversar.
Hoje, ao passar por ali, tento sentir o mesmo que sentia na infância. Em vão. É outro espaço;  aquele em que me sentia protegida e amparada, não mais existe. Ou melhor, existe apenas em minha memória, dentro de mim. Está bem guardado, junto às pessoas queridas que conviviam comigo nessa época e não mais aqui estão.
Mas é uma lembrança forte em minha vida e, muitas vezes quando alguém me pede alguma referência do centro da cidade, esqueço-me de que o tempo passou e digo apenas:
Fica perto do Jardim...


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

FORA DO AR

Estive fora do ar por quase um mês. 
Meu computador estava nas últimas, recusando-se a  comunicar-se com outros... Finalmente, chegou o novo, mais moderno e disposto a atender meus desejos de comunicação...
Cá estou novamente, pedindo desculpas aos que me acompanham por este período de ausência. Desta vez, involuntário.

Para nosso deleite, o poema de Manoel de Barros

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS 

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.


Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.



Manoel de Barros 
Memórias inventadas:  As Infâncias de Manoel de Barros 
São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.